Uma das principais lideranças nacionais pela reforma agrária é uma mulher, filha de cortadores de cana do interior de Pernambuco, que entrou para a luta pela transformação da estrutura agrária brasileira aos 18 anos, depois de haver participado de uma ação de ocupação de uma fazenda, em 1996. Hoje ela é da coordenação nacional do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) – o segundo maior movimento social pela reforma agrária no Brasil – faz pós-graduação em Soberania, Segurança Alimentar e Agroecologia no semi-árido pernambucano e dirige a mais importante atividade da história do Movimento – A Marcha da Reforma Agrária do Século XXI.
Vânia Araújo se preocupa em dar pelo menos um breve retoque na maquiagem antes de tirar as fotos para a entrevista. Ajeita o cabelo, vai até o espelho, passa um batonzinho. Mas quando se trata de dar opinião suas respostas são diretas e contundentes. “A reforma agrária no Brasil ainda é vista como uma política de compensação, e não como um projeto de desenvolvimento”.
Para a representante do MLST essa é a reconfiguração do debate sobre a reforma agrária que se faz necessário para garantir um projeto estruturador de desenvolvimento para o país. E isso será alcançado quando a reforma agrária for finalmente entendida como um processo de inclusão social, com distribuição de terra e produção de alimentos.
UMA MARCHA DE 200 KM –
Assim como outros movimentos sociais, o entendimento do MLST é de que a reforma agrária não é tarefa só de um setor da sociedade, mas do conjunto dos atores sociais, do campo e da cidade.
É por isso que foi proposta a realização da “Marcha da Reforma Agrária do Século XXI”, como um importante meio de recolocar a questão da reforma agrária na agenda política nacional. “A Marcha vai chamar a atenção para a necessidade de dar mais peso ao Eixo da Inclusão Produtiva, o menos desenvolvido dos três pontos do Programa de Combate a Miséria do governo Dilma. Queremos mobilizar tanto os setores ligados a questão da terra, bem como parlamentares, prefeitos e governadores e sociedade civil em geral com o objetivo de discutir o papel da reforma agrária na superação da pobreza no país”, explica Vânia.
Serão milhares de militantes e simpatizantes da reforma agrária, em diferentes delegações de vários movimentos sociais, que irão participar de todo o percurso, mais de 200 km de Goiânia a Brasília, passando por mais de dez cidades durante 15 dias, iniciando no dia 21 de agosto.
O lema da Marcha é “Aperte a mão de quem o alimenta”, porque, como explica a militante, já esta comprovado pela própria ONU que a agricultura familiar e assentamento de reforma agrária são responsáveis pela produção de 70% da produção de alimentos básicos da mesa do brasileiro e 74% da mão de obra do campo.
AGRONEGÓCIO X AGROECOLOGIA
O foco central da Marcha será, justamente, a questão da produção de alimentos agroecológicos em oposição a produção de alimentos utilizando veneno - da forma como realiza a monocultura do agronegócio brasileiro.
Desde sua fundação o MLST coloca que como diretriz política o inimigo da reforma agrária não é mais o latifúndio improdutivo, senão o agronegócio. Isso é o que embasa, segundo Vânia, o conceito de reforma agrária do século XXI porque abre um embate direto contra o modelo agrícola excludente que é promovido pelo agronegócio: monocultura, utilização de veneno, desemprego. “Já denunciamos isso há muito tempo, e outros movimentos, ao reconhecerem hoje também que o inimigo é o agronegócio, revela que há uma correlação de forças no Brasil que unem os movimentos sociais do país sob a bandeira da denúncia da exclusão no campo brasileiro”, analisa.
Por isso a disputa com o agronegócio é necessária: se o projeto do agronegócio é concentração, o da agricultura familiar e do assentamento de reforma agrária é a democratização da terra; o agronegócio estabelece a monocultura, a agricultura familiar promove a diversificação de alimentos; o agronegócio produz alimentos utilizando agrotóxicos e sementes modificadas, a agricultura familiar defende a produção de alimentos orgânicos, com métodos agroecológicos e inclusão de mulheres e jovens.
“Há uma incompatibilidade entre o agronegócio e a agroecologia. São projetos antagônicos que estão em disputa”, afirma Vânia Araújo.
Para o argumento de que é o agronegócio que traz riqueza para o país ao equilibrar a balança comercial, Vânia lembra que também é o agronegócio que exporta matéria-prima. “Não temos beneficiamento de grãos, não agregamos valor, não geramos emprego, não temos indústria. Isso gera situações como uma Alemanha com o titulo de maior exportador de café do mundo, sem sequer produzir café. Eles compram de vários países, especialmente do Brasil, e lá beneficiam e exportam para outros locais. O agronegócio não promove o desenvolvimento da nação do ponto de vista da indústria e da geração de emprego”.
REFORMA AGRARIA DO SÉCULO XXI
Por isso o mote principal do projeto de reforma agrária do século XXI do MLST são as Empresas Agrícolas Comunitárias, que é exatamente o planejamento da produção nos assentamentos de reforma agrária para permitir que haja o beneficiamento da produção agregando valor e gerando emprego e renda.
“Com isso também queremos garantir produtos de melhor qualidade para a população brasileira. A humanidade hoje quer uma vida mais saudável e isso passa necessariamente pela alimentação de qualidade que quem pode prover é a agricultura familiar, e não o agronegócio”, pondera Vânia.
No dia 21 de agosto, no lançamento da Marcha, haverá a inauguração também da Empresa Agrícola Comunitária de Lacticínios do assentamento Che Guevara, no município de Itaberaí, em Goiás.
Ainda estão programadas para serem lançadas brevemente as Empresas Agrícolas Comunitárias de distribuição de alimentos em São Paulo, outras duas de laticínios em Minas Gerais e no sertão pernambucano, e uma de beneficiamento de frutas no Rio Grande do Norte.
“A agricultura familiar e o assentamento de reforma agrária não apenas cumprem um papel estratégico para o desenvolvimento do país, como também para a alimentação de qualidade para o mundo”, conclui a líder do MLST.